Já num anterior “post” chamado “O Colmo” tive a ocasião de publicar um texto de Miguel Torga sobre Castro Laboreiro. Tratou-se do trecho do final do Capítulo “Minho” do seu livro “Portugal”, obra publicada pela primeira vez em 1950. Aí, o grande Poeta e Prosador português, aborrecido com a verdura e o garrido das terras baixas do Minho («o vinho é verde, o caldo é verde»), inicia a sua viagem em Melgaço e chega a Castro Laboreiro à procura do «meu Minho» (Torga nasceu em São Martinho da Anta, Vila Real, sendo, por isso, um Transmontano, daí a sua identificação com as terras agrestes, planálticas e montanhosas de Castro Laboreiro!).
Bem, o texto que se inicia no “post” intitulado “O Colmo” continua assim:
«(…) Um rebanho de ovelhas silenciosas retouçava nas pedras da fortaleza desmantelada. E uma velha muito velha, desmemoriada como uma coruja das catacumbas, vigiava a porta do baluarte, a fiar o tempo. Era a pré-história ao natural, à espera da neta.
Ó castrejinha do monte,
Que deitas no teu cabelo?
Deito-lhe água da fonte
E rama de tormentelo.
Que deitas no teu cabelo?
Deito-lhe água da fonte
E rama de tormentelo.
Bonita, esbofeteada do frio, a cachopa vinha à frente dum carro de bois carregado de canhotas. Preparava a casa do Inverno para quando chegasse a hora da transumância e toda a família – pais, irmãos, gados, pulgas e percevejos – descesse dos cortelhos da montanha para os cortelhos do vale, abrigados das neves.
- Conhece esta cantiga?
- Ãhn?
- Ãhn?
Falava uma língua estranha, alheia ao Diário de Notícias, mas próxima do Livro de Linhagens do Conde de Barcelos.
-É legítimo este cão?
-É cadela.
-É cadela.
Negro, mal encarado, o bicho, olhou-me por baixo, a ver se eu insistia na ofensa. O matriarcado teimava ainda…
- A Peneda?
A moça apontou a vara. E, como ao gesto de um prestidigitador, foram-se desvendando a meus olhos mistérios sucessivos. Todo o grande maciço de pedra se abriu como uma rosa. A Peneda, o Soajo e o Lindoso. Um nunca mais acabar de espinhaços e de abismos, de encostas e planaltos. Um mundo de primária beleza, de inviolada intimidade, que ora fugia esquivo pelas brenhas, tímido e secreto, ora sorria de um postigo acolhedor e fraterno.
Quando dei conta, estava no topo da Serra Amarela a merendar com a solidão. Tinham desaparecido de vez as cangas lavradas e coloridas que ofendiam as molhelhas do suor verdadeiro. A zanguizarra dos pandeiros festivos e as lágrimas dos foguetes já não encandeavam a lucidez dos sentidos. Os aventais de chita garrida davam lugar aos de estopa encardida. Nem contratos pré-nupciais ardilosos, nem torres feudais, nem rebanhos de homens pequeninos, dóceis, a cantar o Ave atrás do cura da freguesia. Pisava, realmente, a alta e livre terra dos pastores, dos contrabandistas e das urzes (…)»
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