09/07/07

Conversa Castreja I

Personagens: Tio Francisco (TF) e um Vizinho não identificado (VZ)

(VZ)- Deus lhe dia boas noites tio Francisco! Intóm est’á ó lume, ei! É ele huje sabe, cá faz um frio que parece Janeiro, com’é.
(TF) - Isto um bélho tem de star sempre’ó lume, cá lá ó frio nom pode star! Intóm stou p’ràqui ó borralho p’ra tê’los pés quentes.
(VZ) - Cecais qu’estaria milhôr na cama porqu’ò calor da cama é milhôr.
(TF) – Mais na cama nom se póde estar sempre, c’àté dói o corpo è os ossos: è em canto a gente póde lebantar estas pernas, bai-s’erguendo.
(VZ) – Pois eu huje fui guiá’la auga á Porteleira, é bi-me mal co’a nebe: todo era escorregar, escorregar, que dei cada caída, c’até me parcia que nom me lebantaba, nim binha pr’ó eido!! É apareceu-m’o condanido do lobo no caminho, que p’ra me librar d’ele, bi-m’entr’à cruz e o caldeirinho, è pensei que era huje a minha última.
(TF) - Sume-t’artelo! Eu t’arrenego! Àbrenúncio! Que demonho de bicho! Cá faç tanto mal perí! Só com obelhas tem comido tantas, tantas, c’àté nom sei como lhe nom cái o rabo co’as unturas que dá ás tripas!
(VZ)- Veigam-che cantos hai no outro mundo! C’ó demonho do lobo até me fezo pôr rouco a berrar eu ú, ú, ú; mais ninguém m’oubia. Olhe cá pensei que lhe daba üa cêa àquele condanido. Eu bém chamaba é berregaba, mais ninguém me falaba! O escomungado parece qu’adebinhaba que estabámos ali só os dous, p’ra juntá´los coletes.

(TF) – Pois graças a Deus qu’escapache d’esta enfeita. (…)

Este é a primeira parte de um diálogo, imaginário, entre dois Castrejos e foi escrito em 1903 pelo Abade de Melgaço da altura, o Padre Manoel José Domingues, natural de Castro Laboreiro tendo sido publicado por JOSÉ LEITE DE VASCONCELLOS in Opúsculos, Vol. II – Dialectologia (parte I), págs. 365 a 369 – Coimbra, Imprensa da Universidade 1928.

É um documento muito curioso, pois julgo tratar-se da primeira tentativa de escrever o designado “Dialecto de Castro Laboreiro”, e tem a mais valia de o autor ser um natural da nossa Terra.

Há contudo uma incoerência na situação descrita na conversa. Incoerência que se traduz no facto de o Vizinho dizer ao Tio Francisco que foi guiar a “auga” quando afinal havia uma nevada tão grande que o próprio diz que se fartou de escorregar: “(…) dei cada caída, c’até me parcia que nom me lebantaba, nim binha pr’ó eido.” . Ora, tanto quanto sei não se guia a “auga” no Inverno. Esse é um trabalho que se pratica no fim da primavera e no início do verão quando o clima é seco e a falta de pluviosidade obriga a que o regadio se faça utilizando a água previamente reservada nas poças das minas.

Bom, a parte esta pequena incoerência, o texto é absolutamente delicioso, embora algumas palavras e expressões sejam um tanto ou quanto estranhas para quem está familiarizado com a “fala” de Castro (pelo menos para mim!), contudo tais palavras, expressões ou formas fonéticas, podem muito bem ter estado em uso à data da criação do diálogo (finais do Sec. XIX e princípios do Sec. XX) e entretanto terem caído em desuso.

Veja-se por exemplo.
INTÓM: a meu ver a grafia mais correcta para corresponder com o fonema da palavra seria ENTÔM.
CECAIS: Nunca ouvi dizer este termo. Aquele que conheço é SECALHA, ou melhor SE CALHA.
CONDANIDO: Também não conheço, talvez devesse ser CONDENADO ou CANDANADO (cão+danado).
SUME-T’ARTELO: Também nunca ouvi, mas soa mesmo a “castrejo”.

De qualquer forma vê-se que o texto foi escrito por alguém que realmente conhecia o falar da gente de Castro Laboreiro, pois quase todas as palavras e expressões são familiares a quem conheça por dentro a forma como as pessoas de “Castro Laboreiro” se expressam na sua autenticidade, ou seja sem as adulterações que o “português” norma tem aportado ao velho dialecto das gentes de Castro.

Nos próximos posts veremos a continuação deste diálogo.

2 comentários:

Bocanegra disse...

Alguém consegue identificar a "PORTELEIRA", ou será que se trata de um sítio fictício, inventado pelo nosso conterrâneo o Padre Manoel José Domingues, para efeitos deste diálogo?

Anónimo disse...

não faço ideia do que seja...