04/06/08

A "belhota"

Eu já tinha ouvido falar dela! Já outros pescadores me tinham dito que a “belhota” vivia há anos nos “Poços” abaixo das “Andorinhas”! Inclusive, já uma vez ou outra eu próprio tinha divisado a sua silhueta pesada e escura a esquivar-se logo que a minha sombra tangia as águas límpidas do rio.
Naquele fim de tarde, lá vinha eu, estourado e com as pernas escavacadas por um dia de pesca que começara manhã cedo no “Salto do Gato”, e ainda por cima desanimado e encharcado pelos resultados: - Uma magra meia dúzia de exemplares de medida que me tinham custado 3 amostras e dois tombos a todo o comprido nas águas frias do Laboreiro. No entanto, quando me aproximei do “Poço” onde residia a “belhota”, uma centelha de ânimo circumnavegou o meu pobre e cansado espírito! Aquele tipo de centelha de ânimo que só os verdadeiros pescadores de trutas conseguem sentir e discernir! Aquela vontade imperscrutável de lutar, de vencer e de colher o ser mais magnificamente instintivo que habita as águas generosas e fecundas do nosso rio.
Lá me aproximei, contra a corrente conforme mandam os cânones, o mais silenciosa e pacientemente que pude e, de forma pausada e comedida, consegui colocar-me numa zona escondida pela sombra de um esplendoroso salgueiral, o que me permitiu observar tranquilamente o rio. Naquele ponto, a água, revolta e voluntariosa, impulsionada pelos vários “cachons” a montante, corria velozmente pelo centro do “Poço” estreito e “acanhonado”, mas nas margens existiam pequenas áreas remansosas onde por certo àquela hora se encontrariam, fartas e gordas, as “pintalgadas” após um aprazível dia a degustar as iguarias trazidas pelas águas.
O primeiro lançamento descreveu uma parábola perfeita e a pequena amostra, uma clássica “Celta n.º 1” esverdeada, caiu cerca de 20 a 25 metros de distância, sob a margem esquerda, logo abaixo do movimentado “cachon” que encimava o “Poço”. Com três ou quatro voltas do carreto consegui trazê-la para a zona remansosa e aí imprimi um movimento lento e constante ao carreto, para que a amostra pudesse desenvolver as suas rotações com a maior estabilidade possível.
De repente, quando a amostra saída do “remanso” atravessava a correnteza do centro do “Poço”, um violento esticão denunciou que uma truta a tinha abocanhado e por isso, acto contínuo, levantei de sacão a ponteira da cana enquanto com um golpe do carreto tentei dar duas ou três rápidas e consistentes voltas por forma a ferrar a “pintona”. Tentei! Porque a resistência que encontrei foi de tal ordem que rapidamente desisti, temente da integridade do fio (uns 100 metros de “Mitchell” n.º 20), bem como do restante equipamento!
Um sobressalto percorreu as minhas fibras mais recônditas! Seria que por qualquer manhoso acaso do destino eu tinha fisgado a velha truta!? Respirei fundo! Toda a gente sabe que um sistema nervoso alterado é o pior inimigo do pescador de trutas. Lembrei-me que em casos como este a solução é abrir a asa do carreto, de forma a, controladamente, “dar fio” à truta com o objectivo de a cansar!
Assim fiz, e a truta, qual torpedo, desembestou para montante na direcção da margem esquerda dando com isso início a uma luta titânica pela sua preciosa vida. Eu lá me fui segurando, ora largando fio, ora puxando fio, enquanto o pobre bicho tentava esquadrinhar o “Poço” em busca de salvação. A luta durou cerca de dois minutos, dois minutos e meio, uma vez que a partir de determinada altura a truta deixou de oferecer resistência e assim, pouco a pouco consegui trazê-la na minha direcção com o intuito de a apanhar, uma vez que tira-la de “sacão” estava fora de questão dado que, muito provavelmente, a ponteira da cana não iria resistir.
Debrucei-me, então, e pude constatar que se tratava de um exemplar magnífico que deveria rondar os 45 cm de comprimento, e que tinha a amostra cravada unicamente na mandíbula inferior, o que aliás se revelou fatal para a minha pretensão, pois que a truta, até aí aparentemente apática, logo que lhe descravei a amostra deu um magnífico impulso, torceu-se no ar e mergulhou no poço, livre e pujante de vida. O mais curioso e rísivel é que ao desenvolver, com sucesso, estes movimentos inesperados, a bicha, enquanto eu esbracejava a tentar segura-la, “sorregou-me” uma valente chapada na cara com a barbatana traseira que, apesar de não me ter magoado o corpo, me magoou profundamente o espírito! E, assim, lá fiquei eu aturdido, de mãos a abanar e com uma estranha sensação de vazio que me custou muito a digerir enquanto subia, estafado e desanimado, pelo caminho dos moinhos em direcção à “Ponte Belha” e à "Bila".
Hoje, a duas décadas de distância e muitas trutas depois, ainda me lembro bem da “belhota” que naquele dia foi suficientemente esperta e valente para me escapar, mas, conforme seria de esperar, já não sinto qualquer tipo de sensação de vazio ou decepção, pelo contrário, sinto um imenso e estranho carinho por aquela bela truta, que não sei se chegou a ser pescada por alguém (espero que não!). Um carinho que abarca, para além das trutas do nosso rio, todos os seres silvestres que habitam a nossa maravilhosa terra.

2 comentários:

Eira-Velha disse...

Esperta, a danada. E como são diferentes daquelas "palermonas" assalmonadas que criam à força de porcarias naqueles charcos do rio Coura!!!
Mas ainda bem que a "belhota" se safou porque hoje andarão por lá as suas descendentes para gáudio dos apaixonados pela arte.
Aquele abraço, amigo.

fotógrafa disse...

Adorei a tua descrição deste dia de pescaria...
Consegui sentir-me no quadro que aqui descreveste...e ainda bem que a truta se safou...rsrsrs
afinal agora já há tantas de viveiro,que as autênticas podem bem reclamar a vida livre...
abraço e bom fds