15/05/08

O beijo da mulher serpente


“Vivia na montanha do Quinjo, em Castro Laboreiro, uma princesa que tinha sido encantada sob a forma de uma serpente, e que trazia uma flor presa na boca.
Era esta princesa fabulosamente rica e estava disposta a dividir a sua riqueza com quem a desencantasse. Como ia de 100 em 100 anos à feira de Entrimo, em Espanha, altura em que recuperava a sua forma humana, lá contou como deveria proceder a pessoa que estivesse dis­posta a desencantá-la: ir ao Quinjo e dar um beijo à flor que ela, já na forma de cobra, trazia na boca.

Se os séculos foram passando sem que aparecesse alguém sufi­cientemente corajoso para realizar tal façanha, nem por isso se pode dizer que o tempo tenha apagado nos homens a crença no tesouro escon­dido ou tenha esmorecido a fé na sua recuperação, mesmo que para tal se tivesse de cumprir o ritual prescrito pela lenda. A cobiça era senti­mento mais forte que a repugnância e o medo, sem contar ainda que a astúcia humana é de tal forma atrevida e pretensiosa que só por si consegue dar, a quem dela resolva largar mão, uma coragem inicial que na maioria dos casos, se não é condição de sucesso é pelo menos de chegada à última etapa possível.

Foi assim que um dia, levados pela cobiça e apoiados na astúcia, um grupo de homens, tentaram desencantar a princesa. Se o pensaram, logo programaram a aventura, animados pelo facto de um deles conhecer os segredos do livro de S. Cipriano, que ajudaria a tomar o tesouro escondido e defendido pela serpente.

Havia, contudo, uma dificuldade que a todos transtornava e que não viam meio de a superar. Como ganhar coragem para beijar a serpente?
Lembraram-se então os nossos heróis de um cego que havia no lugar e que, pelo facto de não ver, não sentiria repugnância em praticar o acto. Bastante instado, mas sem saber bem ao que ia, o pobre lá anuiu em juntar-se-lhes.
Reunido o grupo no local certo, no dia e hora com­binados, resolveu o animador da proeza, na intenção talvez de melhor avivar os pormenores da façanha, puxar do livro e ler a lenda aos com­panheiros no próprio cenário onde se iria desenrolar o drama. A um dado passo da leitura, porém, fez-se ouvir um barulho medonho que, repercutindo-se pelas fragas adiante, parecia querer fendê-las para delas fazer sair a figura de um monstro.

Nem se interrogaram a respeito do estranho fenómeno: gasta a última reserva de coragem, hei-los numa corrida doida, galgando e des­cendo penedos. na ânsia de alcançar a segurança do lugar onde habitavam que, estra­nho ao facto, recuperava no sono a energia gasta num dia de luta árdua.

Sozinho no alto do Ouinjo, ficou o cego, desprotegido de tudo e de todos, e completamente amedrontado. Valeu-lhe o bordão, seu único apoio e guia, para descobrir forma do chegar a chão seguro e sosse­gado. E chegou, passados uns dias a Pereira, uma pequena povoação espanhola, que lhe deu guarida.

Depois de conhecida a aventura no lugar, nunca mais ninguém daqueles lugares pensou em repetir a proeza.
Continua....."
No início da presente década, Álvaro Campêlo, minhoto nascido em Poiares, Ponte de Lima, Doutorado em Antropologia das Religiões pela Sorbonne e professor de Antropologia Social e Antropologia do Desenvolvimento na Universidade Fernando Pessoa, no Porto, desenvolveu, enquanto Director do Centro de Estudos de Antropologia Aplicada da Universidade Fernando Pessoa, uma investigação que teve por objecto a recolha de tradições orais do vale do Minho, no campo do fantástico.
Os resultados desta investigação foram publicados na obra “Lendas do Vale do Minho” do mesmo autor, editada em 2002 pela Associação dos Municípios do Vale do Minho. Posteriormente, Álvaro Campêlo publicou ainda no “Boletim Cultural” da Câmara Municipal de Melgaço um estudo chamado “O Discurso do Fantástico no concelho de Melgaço”, onde o ilustre Académico, desenvolve, aprofunda e completa os dados recolhidos no concelho de Melgaço.

Neste estudo encontra-se publicada esta “lenda” ou “conto” recolhida pelo autor em Castro Laboreiro. Dada a sua extensão optei por publicar unicamente a primeira parte, a segunda seguirá em próximo capítulo.
Uma última nota para informar aos que não sabem, que o "Quinjo", ou "Quinxo" é uma imponente montanha sobranceira ao lugar do Ribeiro de Baixo, situada em território Galego na margem esquerda do Rio Laboreiro.
Ilustração: HR GIGER

3 comentários:

Eira-Velha disse...

Bom dia.
Fabuloso, este conto. Muitas outras pérolas de cariz popular se devem ter perdido. Uma pena! Por isso urge preservar e divulgar o que ainda for possível. A transmissão oral marca também a diferença de comportamentos sociais que se observavam há algumas décadas e a actualidade.
O tempo de convívio entre as pessoas era ocupado a falar, coisa que agora pouco se verifica. Às refeições assiste-se ao desenrolar dos noticiários, fora delas há mais coisas para fazer...
Venha a segunda parte e
Força na Berga!

fotógrafa disse...

Muito interessante esta lenda, fico aguardando com expectativa o resenrolar da mesma...

O QUE SOU


Sou pássaro que voa,
sou voz que ecoa,
sou riso, sou choro,
sou mulher feliz!


Sou ar, sou terra,
sou carinho, sou lua,
sou sol que alumia,
o caminho que sigo,
para ser PESSOA!

Sou alma, sou água
sou riso, sou flor
tudo faço porque quero,
faço por AMOR!

(Euzinha)

Bom fds.com muito sol, calor e harmonia…
abraço

Anónimo disse...

As lendas são um importante contributo para a preservação da nossa memória e identidade colectiva, como povo e conjunto de valores. São pérolas que muito aprecio. Boa semana.