23/05/08

O beijo da mulher serpente (continuação)


" (...) Em tempos mais recentes, um jovem, ao saber, por um pastor, da existência da serpente, logo se lembrou da sua terrível história de amor. A mãe da sua namorada contrariava muito seriamente o namoro e afeição que a filha mantinha com ele, facto que os obrigava a encon­trarem-se às escondidas por entre as penedias. Não tardou muito que a mãe desse com o esconderijo dos namorados e, desesperada com a desobediência da filha, lhe lançasse esta maldição:
- «Que de futuro andes de rastos como as cobras no alto do Quinjo».
Passados dias, desapareceu a rapariga sem deixar rasto!
Associando os factos, não restaram dúvidas ao rapaz de que se tratava da namorada que cumpria o fado a que fora condenada pela mãe. A confirmá-lo, lá estava a flor que ele lhe oferecera e que ela, numa atitude garrida, trazia entre os dentes no momento em que recebera a maldição.
Desesperado pela triste sorte da jovem e também pela sua infe­licidade, subiu ao monte e perguntou à serpente quais as possibilidades que havia de lhe quebrar o encanto. Respondeu-lhe esta que bastaria que ele, rapaz, tivesse a coragem de a beijar na boca. Mas, cautela, se à terceira tentativa o não conseguisse, redobraria o seu encanto e não mais podia trazê-la à vida e ao seu amor.
Voltou o rapaz mais tarde, acompanhado com gente amiga, para realizar o desencanto: porém, na altura em que se aproximou da serpente, esta lançou tais silvos e contorceu-se de tal maneira que pôs em fuga todos os que presenciavam a cena. Não desistiu o namorado e, na segunda tentativa, fez-se acompanhar de um padre, para ajudar o ritual com as suas rezas, e, esquecido do que havia acontecido aos outros seus conterrâneos, de um ceguinho que, pelo facto de não ver, poderia substitui-lo no acto de beijar a serpente com menos repugnância. Repe­tiu-se a cena anterior e tanto o padre como o cego fugiram desaus­tinados.
Entendeu o rapaz que teria que ser ele sozinho, e sem a ajuda ou apoio de ninguém, mas amparado pelo amor que nutria pela jovem, a cumprir o feito. Enchendo-se de coragem, aproximou-se da serpente e, sem dificuldade de maior, deu-lhe o beijo, recebendo em troca nos seus braços a namorada. Regressaram felizes a Ribeiro de Baixo, seu lugar de nascimento, e casaram mais tarde na vila”.
Sobre esta lenda e outras congêneres como as das "Mouras" encantadas diz-nos António Câmpelo na obra indicada no "post" anterior: - "A moura-serpente transporta-nos para o encantamento original, que tem a ver com o fado a que está condenada a serpe, ela mesma um espírito das águas subterrâneas. Água e cabelos deambulam sem forma, ao sabor de intenções que lhes são estranhas. Ao solicitar o beijo para a libertar do encanto, a moura apela para o beijo como sopro de vida, e não o beijo amoroso. Este beijo, e a componente oral que lhes está associada, orientam a origem do mundo para um silêncio que se esconde durante um tempo determinado e que, cumprido, se manifesta na vida e no usufruto de todas as riquezas. Não respeitar esse silêncio – segredo – solicitado pela moura, ou introduzir palavras que estão proibidas no ritual de desencantamento, é falhar no resgate da moura amada ou do tesouro desejado".
Tal como também nos diz o Professor Campêlo, Alice Geraldes na sua obra : “ Castro Laboreiro: a mulher na vida e na lenda”, 1978, Mínia, Braga, 2ª Série, 1 (2), pp. 42-64. , também faz menção a esta lenda, traçando uma longa interpretação da mesma, tendo como elemento de análise o género feminino e a transformação dos seus papeis na sociedade de Castro Laboreiro. Segundo esta autora, uma lenda reflectirá a mentalidade mais conservadora e antiga da população, enquanto a versão moderna, a do jovem par de namorados, mostra um novo tipo de enamoramento que supera as diferenças sociais quanto à riqueza.
Ilustração. HR GIGER

2 comentários:

Eira-Velha disse...

Excelente! As lendas de mouras encantadas e outras, quase sempre associadas a tesouros escondidos, povoam o imaginário do nosso povo e preenchiam grande parte dos serões da minha infância, à volta da lareira, com uma mortiça candeia a petrólio que mais parecia uma moderna lâmpada fluorescente (eheheh). O único suporte era a mente de cada um e a transmissão oral acabava por lhes dar um cariz local adaptando-as conforme calhava.
Um abraço e bom fim de semana.
Ah, e força...

fotógrafa disse...

Amanhã o sol será o mesmo mensageiro da luz, mas as circunstâncias, pessoas e coisas, poderão estar diferentes.

Hoje significa o teu momento de agir, semear, investir as tuas possibilidades afectivas em favor daqueles que convivem contigo.

Hoje é o melhor período de tempo na direção do tempo sem fim...
Bom fds
abraço